sábado, 26 de setembro de 2009

China 1989: o poder nas ruas.

O artigo de Domenico Losurdo, publicado no site da Fundação Lauro Campos, sobre os vinte anos do massacre de Tiananmen, expõe uma visão bastante parcial dos acontecimentos. O filósofo italiano se alinha com a burocracia chinesa e busca argumentos para justificar a repressão e o assassinato de milhares de jovens.
O presente texto se propõe a ser um contraponto. É também bastante parcial, mas para o outro lado da trincheira, na defesa dos estudantes e trabalhadores chineses que lutavam por democracia na Praça da Paz Celestial.
Os acontecimentos de maio e junho de 1989 devem ter suas origens buscadas nas duas décadas anteriores. Após as escaramuças com a URSS, na fronteira comum entre os dois países, em 1969, a burocracia chinesa começou a flertar com os EUA. Em 1971 ocorreram encontros secretos e no ano seguinte o presidente norte-americano, Richard Nixon, em plena guerra contra o Vietnã, visitou Pequim.
O giro à direita do maoísmo seguiu, e em 1975 foi aprovada a nova Constituição, que formalizou o direito à propriedade privada, abolida com a revolução de 1949, permitindo aos camponeses serem donos de pequenas parcelas de terra.
Após a morte de Mao, em 1976, e a ascensão de Deng Xiaoping, as reformas pró-capitalistas ganharam novo impulso, como receita para combater a crise econômica de então. No início dos anos 80 multinacionais como a Volkswagen, a Chrysler e a Coca-Cola se instalaram em território chinês. As medidas econômicas, que em um primeiro momento pareciam trazer resultados positivos, logo começaram a mostrar as armadilhas do capitalismo: especulação financeira, corrupção, pobreza, desemprego, corte nos investimentos estatais em saúde e educação.
Em setembro de 1988 a alta cúpula do PC chinês se reuniu para discutir o balanço das reformas. Os dados não eram muito animadores: inflação anual de 30%; 2,5 milhões de desempregados nos centros urbanos; dívida externa de US$ 35 bilhões. Ficaram mais acentuadas as divergências entre Li Peng e Zhao Ziyang, antigo afilhado político de Deng Xiaoping.
Como se pode ver, a tese defendida por Domenico Losurdo, de que a CIA estaria financiando um golpe de estado na China, é no mínimo questionável. Por que o imperialismo iria incentivar ações de massas que questionassem um regime que nas últimas décadas havia se aproximado dos EUA e tomado medidas pró-capitalistas? Interessava ao Tio Sam a queda brusca da burocracia chinesa? Não seria mais atraente para Wall Street uma calma e pacífica transição para a economia de mercado?
Em abril de 1989 milhares de estudantes saíram às ruas no funeral do ex-secretário geral do Partido Comunista, Hu Yaobang, um reformista que apoiava ações de abertura no regime. “No início, as reivindicações dos estudantes eram muito limitadas. Eles pediam mais democracia nas faculdades e a reabilitação de Hu, afastado do cargo desde 1987. Depois, quando o governo começou a atacá-los e a chamá-los de ‘anti-socialistas’, eles radicalizaram: exigiram pedidos públicos de desculpas e o reconhecimento de suas organizações, independentes do aparelho do partido. Rapidamente as exigências democráticas foram acompanhadas de outras, que atingiram o coração dos burocratas: o fim dos privilégios e a demissão dos principais homens do regime, Li Peng e Deng Xiaoping. Tudo isso no marco do socialismo e ao som da Internacional” (Jornal Convergência Socialista, nº 210, maio/1989, pág. 6).
A partir daquele momento a população começou a sair às ruas em apoio aos estudantes: dois milhões em Pequim; 500 mil em Xangai. “Antes nós tínhamos medo de falar. Os estudantes nos deram coragem”, diziam.
A burocracia se dividiu. De um lado, Zhao Ziyang liderava a parcela do governo que aceitava ceder a algumas reivindicações. Do outro, Deng Xiaoping e Li Peng encabeçavam a linha dura e davam ordens para reprimir. Mas as tropas não reprimiam. Generais se recusavam a obedecer; soldados se juntavam à população nas passeatas.
“Nasceu um novo poder em Pequim. Não é mais o poder dos burocratas velhos e corruptos, da polícia ou das Forças Armadas. Esses estão ilhados atrás dos muros da Cidade Proibida dos imperadores da velha China. O novo poder é o das ruas, tomadas pelos milhares de estudantes, operários, funcionários e até soldados que se recusaram a reprimir o povo. Foi nas ruas que eles construíram barricadas, criaram um serviço de ordem especial para controlar o trânsito dos veículos e até um serviço de mensageiros, constituído por umas duas centenas de motoqueiros. Ninguém circula sem a sua autorização. Nem sequer os caminhões de tropas enviados por Deng Xiaoping para controlar a situação. Esses não podem dar um passo sem a autorização dos estudantes. Literalmente.” (Jornal Convergência Socialista, nº 210, maio/1989, pág. 7).
Contrariando a afirmação de velhos e novos stalinistas, de que os manifestantes estavam apoiados pelo imperialismo, vale a pena reler o pronunciamento do Secretário de Estado do governo Bush (o pai), feito no sábado, um dia antes do massacre da Praça da Paz Celestial e publicado na edição de 04/06/1989 do jornal O Estado de São Paulo: “a situação da China parece caótica. É muito importante que não se aplique demasiada força na repressão. Isso perturbará o governo dos Estados Unidos”.
O governo norte-americano sabia o que iria acontecer no dia seguinte? Foram avisados pelos “camaradas” da burocracia chinesa? Foi uma senha? Um sinal verde para a repressão do domingo? Um recado para que não cometessem excessos, o que dificultaria o apoio aberto dos EUA?
Quanto aos trechos dos supostos relatórios secretos, os “Tiananmen Papers”, é preciso saber em que situação teriam sido escritos, pois já conhecemos a capacidade “inventiva” dos burocratas, presente nas farsas dos Processos de Moscou. Um trecho do artigo publicado em junho/1989 na edição nº 212 do Jornal Convergência Socialista, pode nos dar uma pista sobre o que ocorreu:
“O que aconteceu no domingo sangrento de Pequim certamente será lembrado durante muitos anos. Cenas da mais cruel selvageria ocorreram junto com atos de bravura e heroísmo jamais vistos. Os estudantes e trabalhadores, que tinham dado até então uma imagem de pacifismo, começaram a responder à altura, quando viram que seu trabalho de persuasão já não era suficiente para barrar o avanço das tropas. Os apelos fraternos foram substituídos pelos xingamentos: ‘cães covardes! ’. A incredulidade de ver o mesmo Exército que os libertara em 1949 massacrar agora seus irmãos de sangue foi substituída pelo desejo de vingança: ‘Avante! Sangue por sangue! Vamos vingar os mortos!’. Verdadeiras batalhas foram travadas nas ruas. A população do bairro de Gongjufen incendiou cerca de 50 tanques na entrada da cidade. Os trabalhadores usaram coquetéis molotov. Na Avenida Changan, que dá acesso à praça, foi travado um dos mais demorados combates. Os tanques atiravam na multidão que fugia, mas logo voltava. Em outro local, perto do Museu das Forças Armadas, centenas de manifestantes tomaram de assalto os blindados, desmontaram e levaram as metralhadoras e atearam fogo. Em outros locais, foram os próprios soldados que decidiram abandonar os caminhões e blindados, prontamente incendiados pelos manifestantes”.
Quantos morreram naquele quatro de junho e nos dias seguintes? Nunca saberemos! Fala-se em 1.400 a 2.500 homens e mulheres. Talvez mais. Os números mais pessimistas chegam a dez mil.
Antes da repressão, um jornalista chinês fez o seguinte comentário ao diário francês Liberation: “É possível oprimir os chineses durante muito tempo. Mas quando eles explodem, é como se fosse um vulcão”.
Eram estudantes e trabalhadores que lutavam contra os privilégios de uma burocracia parasitária que além de ter usurpado o poder do povo, conquistado em uma revolução, queria fazer a nova sociedade retroceder ao antigo modelo de exploração. Isto é motivo suficiente para os socialistas e revolucionários prestarem as mais extensas homenagens aos mortos de Tiananmen.

Belém, 24 de junho de 2009

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